Era quase final de dezembro quando vi seu pai entrar, ofegante, próximo ao horário de encerramento da loja onde eu estava exposta. Talvez, eu nem tenha percebido bem, mas me pareceu que a escolha foi mais ou menos assim: “...é…é…aquela ali, pode ser aquela ali mesmo…”.
Havia dezenas como eu naquela loja cheia de falsas luzes brancas, vitrines exageradas e preços remarcados a todo instante. Aquele poderia ter sido o dia em que nos conheceríamos, mas não foi. Os encarregados da entrega foram bastante cuidadosos comigo, afinal, eu tinha que estar inteira no ato do recebimento. Fui entregue em sua casa, e quando a porta se abriu, pensei que iria te ver, mas não foi bem isto que aconteceu, também.
Correram a esconder-me numa sala cheia de presentes próximos a uma árvore de mentira. Fiquei ali, um pouco desajeitada, equilibrada no pequeno descanso que me sustentava entre uma boneca com cara de paisagem e uma bola de futebol, em estado murcho-quase-vazio.
As horas passaram lentamente. As luzes acende-apaga-acende daquela árvore de mentira também pareciam imitar estrelas. Pensando bem, então, as estrelas também eram de mentira.
Na manhã seguinte, o silêncio pairava absoluto até que uma correria tomou a sala onde eu estava e, entre tantos gritos, vi um olhar opaco cheio de ramelas ganhar brilho e alguém de mediana estatura vindo em minha direção com o andar trôpego, cabelo desregrado e uma expressão incrédula. Quase inaudível, entendi: “…ela é minha?!?!”
Dali em diante, confesso, minha memória não me ajuda muito a recordar, mas me parece que começamos um relacionamento. Durante o dia todo, senti seus comandos forçando-me a ir adiante, a passar pela poça de lama, subir e descer as calçadas, além é claro, de frear bruscamente para impressionar qualquer um que estivesse prestando a atenção.
Foram férias muito ativas, rememoro. E tudo o que é muito ativo, e bom, dura tempo suficiente para deixar saudade. Lembro-me de que, sempre após nossas aventuras pelas ruas irregulares de paralelepípedo do seu bairro, eu era deixada em uma garagem ao fundo do terreno, junto a baldes, ancinhos, latas de querosene e, obviamente, aquela mesma bola meio murcha, meio cheia, suja de meleca do cachorro da vizinha.
As tais ‘volta às aulas’ chegaram, e me senti útil ao ser o veículo prioritário para leva-lo à escola, até mesmo nos dias de chuva. Ficar esperando por você, escorada na parede de cimento crespo do muro da escola fez minha pintura ganhar novos traços. Até alguns adesivos que declaravam minha origem se perderam de tanto roçar meu quadro nas paredes e naquela torneira um tanto torta, choramingona interminável, e que fazia o gênero cai-mas-não-cai.
O tempo perdia a noção de mim, na mesma medida em que eu perdia a noção das idas e vindas à escola, ao clube e à igreja; inúmeras apostas de corrida contra modelos mais jovens, porém, sem experiência; perdi a consciência de quantas foram as quedas por motivo algum ou por todos, quando, principalmente, você tratava de se exibir para colegas ou para aquela menina, até simpática, coitada, que tinha ferros nos dentes e teimava em mascar chicletes para se sentir moderna.
Inúmeras, também, foram as intermináveis noites ouvindo a chuva bater, sem piedade, naquele teto de zinco da velha garagem, tadinha. Outras vezes, o frio das madrugadas me fez retesar o quadro e os desgastados Cantilever, ouvindo o ranger dos dentes do idoso Rex a roer o que restara daquela bola quase-sempre-murcha, agora em pedaços um tanto irreconhecíveis. Milhares de noites iguais, uma após outra, passaram como as páginas, quando tocadas pelo vento e seu zumbido, daqueles livros velhos que se encontravam, displicentes, no chão da garagem.
Era Melissa, lembro-me bem, o nome daquela namorada que você buscava em casa, todos os domingos, a fim de levá-la às matinês. Ela não se importava de sentar de lado no quadro enquanto você, despretensiosamente, é claro, a protegia entre os braços no caminho de ida e volta. Eu, parada ali em frente ao Cine Astor, já parecia fazer parte da parede ou do poste pichado, repleto de panfletos colados de maneira irregular e disforme, e infelizmente, cheirando à urina dos notívagos e moradores de rua.
Era outro desses dezembros, tantos foram os que se passaram sem que fizesse qualquer diferença para mim, mas neste, em especial, senti que algo estranho aconteceria. Entre cânticos repetitivos falando de neve num país tropical e mesas fartas no mesmo país desigual, percebi que um objeto com quatro rodas provocou em você o mesmo andar trôpego e aquela idêntica expressão de incredulidade de dezenas de anos atrás. Quase inaudível, entendi: “…ele é meu?!?!”.
Na manhã seguinte, não saímos. Quero dizer, não saí da garagem. Nem à tarde, nem nos dias que se repetiram, penosamente, um após o outro. Não entendia os motivos que levavam os humanos a descartar coisas das quais pensam não precisar mais. Seu pai, já aposentado há vários anos, ousou tentar equilibrar-se num pequeno e tímido passeio em um domingo qualquer, mas não fomos longe. Ele queixou-se de dores nas costas e acabei voltando para casa empurrada pela sua vizinha, dona Margot, aquela enfermeira solteirona que você dizia ser boa gente.
Foi a última vez que saí da garagem. Aliás, a garagem foi demolida para dar lugar a mais um cômodo, pouco tempo depois. Ouvi dizer que você iria morar naquele espaço com sua recém-esposa e um recém-filho, coisas que acontecem, diziam os mais velhos. É bem possível que seu pai tenha tido momentos lindos com o seu filho, mas eu não soube. Aliás, soube, devido aos prantos e às visitas que nunca vi naquela casa que seu pai morreu logo em seguida, numa manhã de quase dezembro. Sinto muito por você e pela dívida que sempre tive com seu pai, por ter me presenteado ao filho.
Fui parar em um lugar escuro, empoeirado e com roedores, em cima do teto da sua nova casa, junto a tanta coisa sem sentido que passei a duvidar da minha existência e utilidade. Meus pneus não resistiram à voracidade daqueles animaizinhos. Da mesma forma, meu selim foi se transformando em refeição. Desfiz-me de todos os meus sonhos de seguir pelas ruas e calçadas, como se desfaz de suas folhas as árvores naquela estação cinza.
Não havia mais dezembros. Não havia mais voltas à padaria. Não havia. Eu, enfim, não havia. Lampejos de risadas e rostos felizes vinham à minha mente, hora ou outra, garantindo fragmentos de loucura àquilo que eu já não sabia mais se era dia ou noite. Desesperança, sei lá, tomou conta de mim. Passei a entender o significado da palavra indiferença.
Sem luzes. Sem sons. Sem nós. Silêncio.
Um risco luminoso, meio indeciso ziguezagueante, passava pelo friso daquela entrada dos meus aposentos, não sei precisar quanto tempo havia passado. Lembro-me de ter visto poeira pelo ar e luzes, mescladas. Um rosto com poucos traços reconhecíveis me levavam a crer que, possivelmente, era você ali, quase igual ao seu pai no dia em que o mesmo entrou, ofegante, pela porta da loja.
Fui retirada com certo cuidado daquele lugar feito de pó, memórias e dores. Não entendo bem porquê, aliás, fui retirada dali em partes. As tais partes que restavam. Uma flanela cruzou-me sem pudor de sul a norte e aquilo tinha certo tom de carinho, é possível. Toda aquela luminosidade me deixou um pouco tonta, mas percebi que você me olhava atentamente, como se estivesse tentando contar bagas em um cacho de uvas.
Perdi o sentidos. Ouvi ruídos que jamais havia conhecido, pareciam rochas sendo esfregadas umas nas outras. Havia faíscas ligeiras lembrando os relâmpagos das noites de chuva na antiga garagem. Senti-me bem, não sei ao certo por que motivos. Na verdade, senti-me melhor quando notei novos cabos, novos freios, um selim esnobe esbanjando bossa, uma lanterna traseira e um farol dianteiro cromado, campainha simpática novinha, entre outras coisas tão especiais que ousaria dizer que só havia me sentido assim, tão bem, quando saí da linha de montagem e fui parar naquela tão saudosa loja, há tanto tempo que nem é possível precisar.
Quando o obreiro artista que em mim trabalhava poliu as últimas partes, por fim, entregou-me a você. E do meio de outras tão jovens quanto eu agora, vi surgir alguém que me lembrava o moleque de nariz sujo que deu sentido a toda a minha existência.
Você se agachou junto a mim, segurando-me pelo quadro com todo o jeito de quem segura uma velha senhora. Senti que você estava confiante, embora trêmulo.
Ouvi sua voz embargada proferir um nome tão belo quanto sonoro, e logo depois disso deixou-me ser tocada pelo meu novo dono, dizendo: “filho, nós estamos em dezembro… e esta é a sua bicicleta! Que você seja tão feliz quanto eu fui com ela”.
Obs: texto de autoria de Therbio Felipe M. Cezar, especialmente criado para a Revista Bicicleta no ano de 2012, sob o título Reminiscências. Atualmente, Therbio Felipe faz parte da equipe Ciclotur Experience.