Este rico texto sobre o noroeste argentino, sua idiossincrasia, paisagens, cultura e sociedade nos foi presenteado pelo grande amigo e artista argentino Andrés Russell. Além de cicloturista, Andrés, que vive em Buenos Aires, é um grande músico e, comumente, viaja para buscar compreender o que se encontra de singular cultura entre cada nota musical, ou batida rítmica, na amada América Latina.
Ah, sim, ele tem o costume bem peculiar de atribuir às paisagens um toque especial, contemplando bicicleta e música, ora vejam só.
Sua última viagem, este ano, foi ao noroeste argentino e, de lá, ele nos dedicou especialmente este texto, que desde já, agradecemos com alegria.
Além de correlacionar paisagens naturais e culturais, Andrés trouxe-nos um pouco do mágico e imagético universo de sua viagem musical ao coração das cidades de Humahuaca, Tilcara e Purmamarca, na província de Jujuy. Sua sugestão é que os cicloturistas, chegando nestas localidades, dêem um descanso para as bicicletas e saiam a percorrer os entornos, envolvendo-se com o povo e suas vicissitudes. É um convite ao encontro e à descoberta do tanto que há nestes rincões latino-americanos.
Essa é a magnífica sensação que se vive ao transitar entre os caminhos destes povos Jujeños no Noroeste da Argentina. A cultura está ao lado, basta ver, ouvir e sentir. Sem que percebamos, ela nos abraça nas canções, nos enlaça nos ritmos, nos ganha nos sabores, ilumina nos saberes, crenças e cotidianos. Vamos a eles:
Humahuaca
Um cerro brinda sua paleta das cores para que pintemos nosso quadro de memórias nas alturas. Sim, acima dos 4.760 metros de altitude nos encontramos com o Hornocal, “o cerro das 14 cores”. Trata-se de uma maravilha da natureza que é parte da formação calcárea denominada Yocaraite, que se estende desde Salta, passando pela Quebrada de Humahuaca, seguindo até o Altiplano Boliviano e Peru.
Seu nome corresponde à conjunção da palavra horno (forno) e cal, já que na época colonial havia ali uma comunidade dedicada à produção caieira. Dito cerro fica distante pouco mais de 25 km do centro histórico do povoado, subindo para o leste numa rua ziguezagueante e muito atrativa pelo visual.
A sensação de perigo e vertigem em algumas curvas está sempre presente, mas é um pequeno condimento nesse prato cheio. Finalmente, se chega ao mirante, aos 4.350 metros, ponto exato frente ao Hornocal, para observar e desfrutar de toda sua majestade. Catorze cores oferecidas pelos minerais, pontas agudas dirigidas aos céus, geometricamente desenhadas pela erosão do vento e das águas. Cores que o brilho do sol e da lua misturam a cada novo dia para encantar gerações.
Para chegar até o cerro: o caminho exige cuidado e atenções, além de preparo físico (terra e cascalho). De bicicleta, aconselha-se que se use o bom senso. Porém, quem quiser um pouco de conforto, desde o centro de Humahuaca há ônibus, vans e taxis que realizam o trajeto, pela manhã e à tarde, todos os dias (exceto que o clima não permita).
Sugestões: Antes de fazer a visita, procure informações das excursões no Ponto do Turista, localizado na praça principal. O tempo para a ascensão de ônibus é de 50 minutos, aproximadamente, então, deve-se calcular 3 horas o tempo total de ida e volta. Leve água, agasalho e escute atentamente todas as dicas dos guias ou de motoristas dos transportes. Seja humilde, a altitude é implacável com quem não a respeita. Saiba, o fôlego amaina, então, preste atenção nos sinais do seu corpo, sobretudo, para desfrutar o passeio. É recomendável ir logo no início da tarde, já que o sol realça mais as cores dessa incrível formação!
Tilcara
Desde Humahuaca, descendo uns 45 km pela Ruta 9 em direção ao sul, encontra-se o povoado Jujeño chamado Tilcara.
Tilcara é muito especial devido a vários fatores. Desde suas Peñas Musicales (reuniões de música folclórica argentina em espaços gastronômicos), comidas como estofado de lhama, empanadas de cordeiro ou de quinoa e queijo, o artesanato e muito mais.
O Pucará de Tilcara é um fortim com uma amplitude de visão incomensurável. Vale a pena visitar e compreender como se organizava taticamente as defesas da cidade.
E o espetáculo apenas está começando. Na semana anterior à Páscoa, as esquinas se vestem de guirlandas e galhardetes coloridos, como as roupas tão formosas e tão características dos povos nativos da Quebrada. Mas, há algo que reforça ainda mais o momento particular desses dias de outono: são os Sikuris!
Desde as 6:30 da manhã da segunda-feira anterior à Páscoa começam a chegar bandas de Sikuris, desde muitos povoados longínquos e cercanos de Tilcara. As ruas, a praça, a igreja…, tudo pouco a pouco vai sendo preenchido de pessoas, cores, músicas, crenças e esperanças. Sikuris são chamados os músicos que tocam o Siku, instrumento de sopro, típico do altiplano.
Os grupos de Sikuris vão se alinhando por turnos para ingressar na igreja, receber a bênção da virgem e, finalmente, partir numa peregrinação ascendendo 24 km até o cerro de Ponta Corral.
Mais de 4.500 sikuris eram esperados este ano de 2018. Como todo ritual tem seus procedimentos, havia muito a presenciar. Olha-se para todos os lados tentando aprender e dar-se conta do que estava acontecendo ali. Cada banda de sikuris vão tocando alternadamente, no princípio com uma ordem de aproximação à igreja, abertura do primeiro grupo, logo o segundo e assim sucessivamente.
Mas, depois de algum tempo, a ordem se perde em meio a multidão, e cada grupo começa quando acha que é seu momento, transformando o ambiente em uma caixa de sons indecifráveis. Ainda assim, o instrumento “la matraca” determina o início e final de cada música dos Sikuris. Assim sendo, o grupo seguinte entende que é a vez dele, porém, com milhares de pessoas nas ruas é difícil perceber o sinal.
Alguns têm varias canções que incluem diferentes marchas rítmicas, contrapontos, etc, mas outros quiçá só uma, duas ou três músicas, porém, não é isso o importante. Quando chega o seu momento ingressam à igreja tocando, obtêm a bendição, e ao sair dela caminham devagar e de costas para a porta. Isto se deve porque sempre têm que olhar de frente àquela que é chamada por eles de “mamãezinha dos cerros”, a Virgem de Copacabana do Abra do Cerro de Ponta Corral.
Além do siku e da matraca, outros instrumentos que podem integrar a banda são o bumbo, a caixa e o prato de condução, etc. E fora do âmbito musical, cada grupo tem uma pessoa que leva um estandarte ou bandeira que identifica seu nome, seu povo, ou outras características dessa união de pessoas. Podem vestir-se de forma igual ou diferente, com trajes muito simples ou figurinos mais elaborados, tudo dependendo de diversos motivos, sejam econômicos, culturais ou simplesmente de organização.
O mais impressionante é que a peregrinação consta de subir caminhando os 24 km até a ponta do cerro. Lá, celebram uma missa, fazem suas promessas e pedidos à virgem, dormem, comem, e na quarta-feira descem levando a imagem da virgem, regressando à Igreja. Ali recebem a bênção final. O caminho é muito difícil, com muitas pedras, cornijas perigosas, vento forte, altitude, frio da noite, fadiga, enfim, tudo faz ainda mais complicada a peregrinação.
É chocante perceber que algumas pessoas vão mesmo sem sequer ter algo nos pés. Ah! E todos tocando música praticamente sem parar! Esta crença ocorre há mais de 150 anos, e segundo os peregrinos, para que a Virgem cumpra os pedidos das pessoas há que realizar a peregrinação 3 vezes.
Depois de falar com alguns Sikuris, procurei entrar em contato com diferentes formações e origens, decidi acompanhar a um grupo por uns 20 quarteirões até o pé do cerro para compreender principalmente (em meu interesse), como eram as melodias e as rítmicas das suas músicas e, sobretudo, para saber como conseguem estar soprando, tocando e ainda ter fôlego para subir essas formosas e empinadas estradas tilcareñas.
Em minha humilde opinião, não é relevante se a pessoa tem fé ou não, se acredita nisso ou não. Penso que como movimento humano, como celebração, união de busca do sentido, de historias milagrosas, de atos de amor, de compartilhar músicas, caminhadas, noites sem abrigo, enfim, tudo isso faz que a força dessa experiência seja muito comovedora e, quiçá, sirva para que alguém, um conhecido ou um outro qualquer, se sinta melhor. Isso, isso finalmente é o importante!
Purmamarca
Descendo pela Ruta 9 outros 22 km em direção ao sul, e virando em direção oeste na Ruta 52, após 3 km nos encontramos com o povoado de Purmamarca.
A pequena e bela Purmamarca é uma vila simples de uns 14 quarteirões com uma formosura única. Um encanto que se encontra em todas as suas construções de adobe, sua praça universal, lojas e ruas cheias de artesanato, suas luzes e faróis. Tudo isso contornado pelo magnânimo Cerro das Sete Cores!
Sim, ao alcance da mão, este cerro praticamente se pode tocar desde qualquer janela do povoado, caminhar sobre ele, sentir sua terra, respirar seu cheiro. Da mesma forma que em Humahuaca e Tilcara, em Purmamarca há meios de hospedagem e restaurantes para todos os bolsos.
O detalhe é que, simplesmente, há menos vagas. Portanto, é bom reservar com antecedência para não se perder este paraíso. Pedalar e caminhar por suas ruas é algo inesquecível, tenha certeza. Se pode rodear todo o cerro pelo caminho chamado “ De los Colorados”, desde onde se aprecia muito de perto as formações e cores do maravilhoso cerro. As noites em Purmamarca são demais e, sua gente é igual.
E além disso, Purmamarca é um ponto estratégico para visitar as Salinas Grandes (67 km direção oeste pela Ruta 52), outro lugar que emociona visitar! Para chegar lá, a altitude supera os 4.100 metros de altitude em Abra de Potrerillos, departamento de Tumbaya, passando pela fantástica Cuesta de Lipan.
De lá, se desce a 3.000 metros no branco horizonte de sal das Salinas Grandes.
A equipe Ciclotur Experience fica super contente pelo envio do Andrés Russell e, nada melhor que um cidadão para apresentar seu próprio país e cultura aos futuros visitantes cicloturistas.
Destinos emocionantes e culturas inesquecíveis esperam você em Ciclotur Experience.