Rafaela Asprino

Esperávamos pela oportunidade ideal de fazer uma entrevista especial com Rafaela Asprino.
Eis que a generosidade foi além da oportunidade.
Esperamos que curtam este bate-papo:

Ainda não tive oportunidade de visitar a China, mas aqui cheguei bem perto. O Lago Pangong, nos Himalaias, divide suas águas entre Índia e China.

Ciclotur Experience – Rafa, primeiramente, quero agradecer pelo carinho de você ter aceito ceder esta entrevista para o Ciclotur Experience. Gostaríamos que mais pessoas, ligadas ou não à bicicleta e ao cicloturismo, pudessem conhecer um pouco de sua história. Sabemos que sua relação com a bicicleta e com as viagens começou muito antes de encontrar o Olinto. Pouca gente sabe, por exemplo, que você até chegou a participar de competições amadoras de bicicleta no estado de São Paulo. Então, se possível, você poderia fazer um resumo da relação Rafaela/bicicleta até o momento decisivo de seguir com o Projeto de Cicloturismo no Brasil Antonio e Rafaela, em 2008?

Rafaela Asprino – Sou eu que agradeço a oportunidade de contar um pouco mais da minha história e das experiências que a vida e o cicloturismo têm me proporcionado! Eu aprendi a pedalar na infância, não me lembro das circunstâncias, apenas que tínhamos duas bicicletas, compartilhadas pelas 3 meninas da casa.

Naquela época (anos 80), em meu bairro de São Paulo, as crianças brincavam na rua livremente, e uma das nossas brincadeiras era pedalar. Quando a gente cresceu, meu pai arrumou uma bicicleta maior, que acabou ficando encostada no fundo da casa, quase esquecida mesmo. Já na época da faculdade essa bicicleta “me chamou” para dar uma volta… eu não tinha uma boa relação com a prática esportiva, e acreditava que minha aptidão se resumia ao estudo e às artes.
Pela primeira vez, a bicicleta quebrou esse paradigma, com ela eu ia até o bairro vizinho somente pelo prazer de sentir o vento no rosto, de me deslocar com independência e de forma ativa. Esses prazeres me capturaram, mas ainda precisou de algum tempo e de algumas influências para que eu passasse a entender até onde a bicicleta poderia me levar. Em 2006, enquanto visitava as amigas Maria Angela e Rosana em Maceió, conheci a prima da Maria Angela, a Daniela Genovesi, campeã em várias modalidades esportivas, inclusive em ultramaratona de bicicleta. A Daniela estava saindo para um treino, e com sua simplicidade, perguntou: – Vou pedalar até a Foz do Rio São Francisco, alguém quer ir?

Na mesma hora eu falei que queria, a ideia de chegar pedalando até o Rio São Francisco me pareceu incrível e fantástica. Eu não tinha a menor noção do que significava para uma pessoa destreinada como eu pedalar 50km, muito menos sob o sol do Nordeste. A Maria Angela teve que me segurar, e acabei não indo. A humildade e carisma da Daniela abriram uma porta na minha mente.
Ela não me julgou incapaz e, mais que isso, ao voltar do treino ficou me estimulando a começar a treinar. Voltei para São Paulo e, por influência de outra amiga, a Bruna Tristão, concluí meu primeiro passeio ciclístico de 30km. Nesse mesmo dia pensei comigo:  – “agora sim, vou treinar muito, pois o dia em que alguém me convidar para ir até a China pedalando, quero estar preparada”-. Com isso, finalmente quebrei com o sedentarismo da vida do escritório de arquitetura em São Paulo. Em grupos de pedalada noturna, aprendi a atravessar a cidade, e logo já estava indo para o trabalho de bike e participando de algumas competições amadoras.

Fiquei muito empolgada, treinava todos os dias, com chuva ou com sol, e nos finais de semana aproveitava para fazer passeios mais longos. Quando percorri o Caminho da Fé, aos 33 anos, estava na melhor forma de minha vida, até então. Pouco depois, mais uma amiga entra nessa história, a Marília Gonçalves, que apesar de não ser ciclista, foi quem me apresentou ao Olinto. Ele não precisou me convidar duas vezes, eu estava pronta para seguir com o Projeto de Cicloturismo no Brasil.

Acampamento na Quebrada de Humahuaca, durante a viagem pelo Altiplano Andino.

Ciclotur Experience – No vídeo de apresentação do site de vocês, há uma frase muito relevante que gostaríamos de abordar. Na narração, é dito que “…um dos maiores empecilhos à prática do cicloturismo no Brasil seja de ordem cultural”. Concordamos com esta afirmação plenamente, mas gostaríamos que você pudesse explicar um pouco mais a respeito da sua forma particular de ver a questão e, se possível, trazer algum exemplo bacana do que já encontrou mundo adentro e afora.

Rafaela Asprino –  O termo “cultura” é complexo de se definir. Para simplificar, podemos considerar cultura como o conjunto de crenças, hábitos, normas legais e conhecimento de uma sociedade. Mesmo que as leis mudem e que seja agregado conhecimento a determinado tema, o dia a dia das pessoas é composto por suas atitudes. Estas, por sua vez, são diretamente conectadas a seus hábitos e suas crenças, não só no sentido religioso, mas também nas outras facetas da vida. Acredito que essas são as nuances mais difíceis de mudar. Um exemplo típico que vemos acontecer diariamente no Brasil é a ditadura dos automotores.

O brasileiro, que é alegre, acolhedor e simpático, se transforma em um ser agressivo e sem educação quando está pilotando um automotor. Apesar de existirem a lei e a moral, o que prevalece é o hábito, e de certa forma, a crença enraizada de que o automotor é o meio de locomoção mais importante e o “melhor” para cobrir grandes distâncias. A partir do momento em que conseguimos mudar essa crença, podemos cultivar hábitos que vão nos levar a agir de acordo com as leis e a moral.
Por isso escolhemos esse trabalho, de semear ideias e sonhos através de nossos livros e documentários. Acreditamos que assim, uma vez em solo fértil, essas sementes podem florir, irradiando a transformação que queremos ver no mundo.

A viagem pelo Altiplano foi a coisa mais difícil que já fiz, fisicamente falando.

Ciclotur Experience – Vivenciamos, nos últimos 10 anos, um aumento exponencial na prática de cicloturismo no país, graças também à divulgação de caminhos e roteiros presentes nos Guias, DVDs e Livros de Cicloturismo que vocês, com tanto Amor, desenvolvem. Mas, temos voltado nossa atenção, especialmente, às mulheres que têm se permitido ir além dos estereótipos machistas incrustados na matriz cultural, inclusive familiar, dos brasileiros. Rafa, gostaríamos de saber sobre o que significa para você ver mais mulheres, a cada dia, realizando seus caminhos de bicicleta e encontrando, cada uma, o seu ‘guidão da liberdade’?

Rafaela Asprino É uma grande alegria saber de cada história feminina que está sendo modelada pela presença da bicicleta. Para mim, isso significa um despertar para novas realidades de existência.

Todas nós temos o poder de decidir nosso caminho, mas o convívio familiar e social pode nos levar a atuar segundo um roteiro pré-estabelecido. Isso pode parecer confortável, pois traz uma falsa ideia de segurança e de aceitação no grupo.

Por outro lado, traz também a perda da conexão com nosso íntimo e nossos reais anseios. Tomar o controle do “guidão” da nossa vida é assumir a responsabilidade e a liberdade de ser quem somos de verdade.

Lidar positivamente com o diferente e com o imprevisível, torna a vida mais leve e emocionante ao mesmo tempo.

Ciclotur Experience – Uma das formas mais insidiosas de controle é o medo, assim pensamos. Você tem cicloviajado por tantos países e encontrado tantas culturas onde o medo é um consorte ideológico e concreto, infelizmente, do universo feminino. Se possível, você poderia dar um exemplo de uma situação que tenha presenciado e que sirva de aprofundamento para as reflexões e ações em nosso cotidiano?

Rafaela Asprino –  Creio que aqui vocês estejam esperando algum comentário sobre nossa última viagem pelo Oriente Médio. No entanto, prefiro comentar sobre algo que conheço melhor, por experiência e por cultura, que é nosso caso brasileiro, e que se aplica a outros países. Eu concordo que o medo é, talvez, a mais eficiente e nefasta forma de controle. Desde criança aprendemos a ter medo, e até a lidar com o medo, mas pouco aprendemos a questionar a origem do medo. O medo tem seu papel, que é o de nos preservar dos perigos, mas ele não deve nos impedir de agir.

Quando nos ensinam a atravessar a rua, nossos familiares nos impõe um certo tipo de medo, que tem seu fundamento real, entretanto, basta olharmos para os lados para estarmos seguros e seguirmos nosso caminho. Assim deveria ser com qualquer medo que possamos sentir.

Um exemplo cotidiano é o medo que muitas mulheres têm de sair sozinhas. Qual o fundamento desse medo? Eu costumo fazer a seguinte associação: dos homens que eu conheço, quais seriam capazes de agir efetivamente contra uma mulher? A resposta é: nenhum. Acredito que eles representam a índole masculina. Existem as exceções, mas, definitivamente, essa não é a regra. Pois bem, voltemos a origem desse medo. Ele advém da crença de que a mulher é indefesa, e por isso precisa ser protegida, precisa de um salvador, aquele príncipe das histórias infantis.
De uma forma sutil, ao repetir e valorizar a imagem da princesa, estamos perpetuando uma imagem de fragilidade e superficialidade do feminino. Crescemos com essa falsa verdade e por toda uma vida podemos acreditar que precisamos mesmo de alguém para estarmos seguras, precisamos de alguém para trocar a lâmpada da casa ou para carregar coisas pesadas. Precisamos dedicar parte de nossa vida em busca da beleza, que por sua vez também é manipulada pelas tendências da moda, com o único objetivo de nos fazer investir mais dinheiro e tempo em superficialidades. Tudo isso faz muito mal para as mulheres, e também para os homens. O feminino e o masculino que, a rigor, deveriam se complementar, acabam se relacionando de forma distorcida ou simbiótica. Existe uma fragilidade e uma força em cada um de nós, mulheres e homens, e cabe a nós mesmos encontrar o equilíbrio específico de nosso ser.

Calorosa acolhida das mulhers turcas.

Ciclotur Experience – No trailer do maravilhoso documentário “Entre salares e desertos, montanhas e vulcões – do altiplano andino ao Atacama em bicicleta”, o Olinto lhe pergunta: – Preparada, Rafa? – e você, com a naturalidade e sorriso de menina responde um ‘não’ tão simplesmente absoluto que nos faz crer que aquela resposta estava guardada, desde sempre, para qualquer que fosse a eventualidade. Você nos faz pensar que nunca estar preparados significa, mais que tudo, permanecer em um contínuo processo de extrema humildade diante das forças da vida, das objeções que porventura surjam e dos horizontes a encontrar. Por favor, gostaríamos de ouvir sua consideração a respeito.

Rafaela Asprino – Realmente, a cena que você comenta foi totalmente espontânea, o Olinto me pegou de surpresa! A viagem pelo Altiplano foi a coisa mais difícil que já fiz, fisicamente falando. Eu imaginava que seria muito difícil, e aquele “não” foi em respeito às forças da natureza e às adversidades que enfrentaria. A sua análise é muito interessante. Em nosso conceito de aventura está “ultrapassar a barreira do conhecido”. Não dá para planejar aquilo que a gente não conhece, podemos apenas prever e imaginar. Sendo assim, a melhor preparação com certeza é aquela que acontece internamente. Considero essencial numa aventura estar preparada para quebrar paradigmas, para aprender com a estrada e com as adversidades, repensar valores, mudar de planos. Fatalmente, isso requer uma dose de humildade e desapego àquilo que nos predispomos a fazer. Tenho que admitir que ainda estou aprendendo essa arte… Esses aprendizados da viagem podem ser transportados para a vida do dia a dia: estar preparada para não estar preparada, lidar positivamente com o diferente e com o imprevisível, torna a vida mais leve e emocionante ao mesmo tempo.

Durante o mapeamento para o Guia de Cicloturismo Circuitos do Sul

Ciclotur Experience – Sei que não há nenhuma pretensão de vocês em querer ser exemplo para as pessoas, mas vocês têm vivido sensivelmente os minutos de suas vidas com reverência. Todas as vezes que nos encontramos, emocionado pela arte do encontro que a vida é, não deixo de lembrar a você e ao Olinto que, certamente, nem sequer imaginem o quanto vocês significam para tantas e tantas pessoas que, por meio do que vocês vivem e dos seus olhares sobre o mundo, transcenderam suas próprias realidades. Eu sou um deles. Como isto toca o seu coração, Rafa?

Rafaela Asprino – Estou certa de que o mérito do aprendizado é daquele que aprende. Por isso eu agradeço a todas as pessoas que dedicam tempo de suas vidas para ouvir o que temos a dizer. São essas pessoas que dão sentido ao nosso trabalho de transformar as vivências em palavras e imagens. Certamente as teríamos vivido, mas poder fazer com que elas reverberem para outras pessoas nos estimula a seguirmos com fidelidade aos nossos ideais de vida, buscando novos caminhos e possibilidades. No final, esse é um ciclo, onde podemos aprender com cada um que cruza nosso caminho.

Ciclotur Experience – Rafa, para finalizar, junto com nosso agradecimento, pedimos que você possa deixar uma mensagem especialmente dirigida às mulheres.

Rafaela Asprino –  Mais uma vez, agradeço a oportunidade de nos comunicar com o pessoal que acompanha o Ciclotur Experience. Para as meninas – assim gosto de nos intitular, pois é certo que dentro de cada mulher existe uma menina – digo que descubram dentro de si e permaneçam fieis aos seus verdadeiros ideais de vida. São eles que nos farão tomar a decisão certa quando o tempo chegar. Felizmente, vivemos em um país livre, cabe a nós nos desapegar das imposições familiares e sociais e assumir a responsabilidade sobre nossa liberdade, e fazer da nossa vida a verdade de nós mesmas.

Agradecemos imensamente à Rafa pela generosidade sem excessões.
Para conhecer mais e interagir com o Projeto de Cicloturismo no Brasil, acesse:  www.olinto.com.br